Anjo

Anjo

 

  A lâmina gelada era um pouco parecida com meu coração: fria, estéril.

  Eu sentia meu sangue correr forte pelas minhas veias, meu coração batia forte.

  Forcei a lâmina com mais firmeza, contendo o impulso de largá-la no chão e sair correndo. Eu tinha que fazê-lo  ou sucumbiria, eu precisava descansar e se a paz era na morte então eu abriria mão de minha vida.

  Senti uma lágrima molhar meu rosto e fechei um pouco os olhos.

  Respirei fundo.Era agora ou nunca.

  Puxei a lâmina rapidamente.  A dor se espalhou pelo meu braço, como se tivesse levado um choque muito forte.

  O sangue escorreu pelos meus dedos e começou a pingar no chão imaculadamente branco do meu banheiro.

- Você não vai fazer isso

  Deixei a faca cair com o susto que levei. Olhei para trás e me deparei com um homem.

- O que...?Como? – balbuciei estarrecida

  E foi aí que eu vi.

  Imagine você a minha situação, eu estava dentro do banheiro da minha casa,com a porta trancada e meus pais estavam trabalhando, estava tentando me matar e derrepente eu olho pra trás e me deparo com um homem negro, de uns 2 metros de altura, vestindo uma túnica branca e agora vem o pior... O homem tinha asas.

  Isso mesmo, asas.

  Eu não sou louca, não estava tentando me matar por loucura, a minha vida é que é um lixo.

  O cara que eu amo é um estúpido que não olha pra mim e não sabe que existo, meus pais são da socialite e só vivem me comparando com minha irmã-perfeita e não tenho amigos verdadeiros, colegas talvez mas amigos mesmo não tenho nenhum.

  Eu estava no fundo do poço, mas ainda não atingira o estágio da loucura. Aquele homem enorme de asas brancas contrariava todo o senso de noção que me restava.

- Você não é louca e eu não sou uma visão, sou de verdade, sou seu anjo, seu guia – falou como se adivinhasse o que eu estava pensando.

- Mas... – eu estava sem palavras.

  Anjo?Anjos existem?

- Sim, anjos, se é assim que você prefere me chamar,existem.

- Ai meu Deus, isso é muita loucura – passei a mão pelo rosto e aí lembrei que tinha cortado o pulso, mas já era tarde demais.

  Meus rosto devia ter sujado todo de sangue mas não sujou porque quando olhei para onde fizera o corte não tinha mais nada ali, nem sangue,nem marca. Nada.

- Sua vida pertence ao Senhor, você não pode tirá-la, só Ele pode.

- Co...como... assim pertence ao Senhor?

- Hoje você tentou cortar os pulsos porque acha que sua vida não faz sentido, mas o Senhor tem planos pra você e apenas Ele os conhece. Você ainda não cumpriu sua missão, não é hora de partir.

-Você é o que? Minha consciência?

  Avaliei o rosto dele. Era diferente de todos os rostos de pessoas que eu conhecia. Era tão... Élfico.

  Suas orelhas eram pontudas, o queixo longo, maçãs do rosto proeminentes e olhos que pareciam dois faróis acesos e o homem, ou melhor, anjo era muito alto. Eu com meus 1,60 de altura batia na altura de seu peito.

- Sou seu guia – repetiu – feche os olhos.

- Não- recusei ,mas algo mais forte que eu me forçou a fechá-los.

  Derrepente eu estava em um campo. Pessoas corriam desesperadas, mísseis zuniam de um lado para o outro. Vi pessoas sendo mortas, casas sendo destruídas ,mas algo me chamou atenção.

  Um menino de uns treze anos olhava para o corpo de uma mulher que jazia morta no chão. A mulher era a mãe dele, provavelmente, pois eram muito parecidos.

  Senti vontade de mandar o garoto correr, mas a cena mudou e agora eu estava em um quarto enorme, umas quinze camas estavam enfileiradas, todas com lençóis brancos forrados.

  O mesmo menino que eu vira na cena anterior – porém um pouco mais velho que antes – se encontrava deitado em uma das camas. Eu não conseguia ouvir direito o que ele murmurava então me aproximei.

-  Por favor Senhor – orava de olhos fechados – abençoe a minha mãe e meu pai, onde quer que eles estejam, por favor Senhor, faça com que minha irmã seja adotada por alguma boa família, ela precisa de um lar muito mais que eu Senhor, por favor, leve minha irmã embora desse orfanato.

   Uma onda de pena se apossou de mim e derrepente eu me vi de volta ao banheiro da minha casa.

- Você viu isso? Viu que ele não pediu nada para si mesmo? Apenas a benção e um lar para sua irmã. Esse menino que perdeu tudo, casa, família, tudo, mostrou-se muito mais forte que você.             

  Mesmo estando em um orfanato, ele não queria nada para ele mesmo. Se você continuasse a ouvir, veria que ele agradeceu ao Senhor pela comida em prato e pela cama que dormia.

  E você? A que você agradeceu ao Senhor ultimamente? A única coisa que sabe fazer é reclamar, se fazer de vítima.

  Sua vida não é melhor ou pior que a de milhares de pessoas. O que você viu foi apenas uma vida, existem muitas outras espalhadas por aí, histórias tristes, pessoas que perderam tudo e que ao invés de simplesmente desistir batalharam e se superaram.

  Não se sinta uma vítima. Se você acha que sua vida é ruim, espelhe-se nessa história que lhe mostrei. Esse menino que perdeu os pais não desistiu, você tem o direito de desistir? Lembres-se sempre que sua alma e sua vida pertencem ao Senhor, só Ele pode tirá-la de você.

  E então ele sumiu, tão derrepente quanto apareceu.

  Peguei a faca que deixara cair e guardei  no armário do banheiro. Lavei o rosto com água gelada e saí do banheiro.

  Eu era outra.

  Apesar de chocada, aquilo fizera com que eu me sentisse em paz pela primeira vez na vida. Eu não precisava mais que as pessoas quisessem ser meus amigos pois eu tinha ao meu lado o melhor amigo do mundo.

  Deus.

Dedicado ao meu querido amigo Muller, meu amigo-anjo de todas as horas.

Beatriz Rodrigues.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês -
É só maldade então, deixar um Deus tão triste.

                                       Índios – Legião Urbana